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20 de Abril de 2024

Estupro constitucional

há 9 anos

Sem consultar ninguém, deputados e senadores passaram a legislar sofregamente sobre mudanças constitucionais. Sob a liderança do cruzado Eduardo Cunha, o plenário da Câmara vota a toque de caixa modificações que interferem no já limitado direito do povo de decidir os rumos do país. Brasília abriga neste momento uma espécie de constituinte pirata, destinada a preservar privilégios presentes e 'corrigir' escorregões como o da reeleição

(...)

No caldeirão do Cunha, cabe tudo. Mandato de cinco anos, fim da reeleição, doações empresariais, voto obrigatório. Quase passou o distritão, que transformaria as eleições de uma vez por todas em disputa de celebridades irrigada por dinheiro grosso. Uma pergunta: algum desses temas foi submetido ao cidadão que votou em vossas excelências?

A resposta é óbvia. Entre tantos outros, o grande estelionato eleitoral do momento está sendo praticado no Congresso (...)

No clima de vale-tudo há sempre os puxadinhos habituais. Mais isenção de imposto para seitas religiosas, refinanciamento a perder de vista para caloteiros reincidentes e, aproveitando a onda, alterações na maioridade penal e nos direitos trabalhistas.

Mesmo num país singular como o Brasil, tem-se a sensação de que certos procedimentos ultrapassam limites (...)

Está mais do que na cara que o cardápio de mudanças da dupla Cunha-Renan implica um reordenamento constitucional."- Ricardo Melo, em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/222792-estupro-constitucional.shtml

Há varias mudanças constitucionais ocorrendo ao mesmo tempo. Mudanças importantes que mudam como o país funcionará nas próximas décadas. Boa parte dessas mudanças estão ocorrendo por meio de PEC, as propostas de emenda a Constituição que sequer são enviadas a sanção presidêncial: uma vez promulgadas pelas duas casas do Congresso e publicadas no Diário Oficial, passam a integrar a Constituição.

Considere, por exemplo, o aumento do mandato dos deputados. Segundo a proposta inicial, a ideia era diminuir o mandato dos senadores e aumentar o dos deputados, igualando-os em cinco anos. A Câmara aprovou ambas as mudanças, mas é improvável que Senadores irão diminuir os próprios mandatos. Ou seja, o aumento do mandato dos deputados não cairá no Senado, mas a diminuição do mandato dos senadores não passara no Senado, consolidando, assim o aumento dos cinco anos. Como isso é feito por meio de uma PEC, não há possibilidade de a presidente vetar tais mudanças.

Então não há o que fazer?

Não exatamente, e a razão é justamente a apontada na coluna acima: há tantas mudanças sendo feitas ao mesmo tempo na Constituição que o STF pode entender que não se trata de uma ou outra mudança, mas de uma substancial reforma constitucional. E uma reforma constitucional só pode ser feita por uma constituinte. Em outras palavras, o STF, a quem cabe proteger a Constituição Federal, pode determinar que tais mudanças são inconstitucionais.

Quando nossos constituintes promulgaram a Constituição em 1988, sabiam que por limitações intelectuais, temporais, sociais ou políticas, a Constituição teria de ser modificada ao longo dos anos. Para evitar termos que convocar uma constituinte todas as vezes que a Constituição tivesse que ser modificada, o constituinte de 1988 criou as PECs. Um botão de emergência que o Congresso Nacional usa sempre que precisa atualizar a Constituição.

Mas, como qualquer botão de emergência, o constituinte de 1988 sabia que seu uso precisaria ser limitado para que o Congresso Nacional não tivesse a possibilidade de mudar a essência da Constituição sem consultar os eleitores. Por isso criou o que chamamos de cláusulas pétreas. Cláusulas constitucionais que não podem ser modificadas pelos ventos que sopram no Congresso. Para modificar uma cláusula pétrea, só através de uma nova constituinte. É inconstitucional modificar uma cláusula pétrea via PEC.

E quais são as cláusulas pétreas?

Todo estudantes de direito aprende no primeiro mês de faculdade que as cláusulas pétreas estão no § 4º do art. 60 da Constituição, que diz:

"Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais."

Os bons estudantes de direito aprendem também que essas são as cláusulas pétreas explicitas. Ou seja, aquelas que estão expressas na Constituição. Mas que há também as cláusulas pétreas implícitas, que embora não estejam expressamente descritas em um dos quatro incisos acima, são tão fundamentais que, se modificadas, a Constituição deixaria de ser o que é.

Considere, por exemplo, se uma PEC mudasse o próprio art. 60, § 4º. Se tal artigo fosse modificado, o escudo que protege as outras cláusulas pétreas cairia, e elas poderiam ser modificadas. Logo, o art. 60, § 4º é uma cláusula pétrea ainda que não esteja na lista do próprio art. 60, § 4º. Por é considerado uma cláusula pétrea implícita.

A dificuldade para os estudantes de direito é que a definição de uma cláusula pétrea implícita depende não apenas daquela cláusula em si, mas de seu contexto dentro da Constituição. O art. 60, § 4º, por exemplo, não é cláusula pétrea implícita por si mesmo, mas porque no contexto da Constituição, se fosse modificado, a essência da Constituição deixaria de ser o que é.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado a um grande conjunto de mudanças. Por exemplo, se mudarmos apenas a possibilidade de reeleição, essa é uma mudança pontual e não é cláusula pétrea. Mas se mudarmos a essência do sistema eleitoral - mandatos, financiamento, fim da reeleição no Executivo, sistema de votação etc - ao ponto de mudarmos a essência da Constituição, tais mudanças só poderiam ser feitas através da legitimidade dada através de uma nova constituinte. Afinal, uma mudança tão profunda modifica nossa democracia.

Se há muitas mudanças, há o claro risco de que as PECs estejam sendo usadas não como um botão de emergência, mas como uma ferramenta para fazer uma nova Constituição sem a legitimidade conferida pelas urnas. Por isso o STF poder entender que a aprovação de propostas de emenda à Constituição atualmente em curso no Congresso são inconstitucionais, ainda que nenhuma delas, individualmente consideradas, fira a Constituição.

Como sempre, analogia ajuda: é o mesmo que um carro: se você mudar o motor, ou o chassi, ou a lataria, ou o acabamento interno individualmente, continua sendo o mesmo carro. Mas se você mudar tudo ao mesmo tempo ou em um breve período de tempo, corre o risco de ter um carro absolutamente diferente.

Vale lembrar: a razão pela qual temos cláusulas pétreas (implícitas ou explicitas) é justamente para impedir que deputados e senadores mudem a essência da Constituição na surdina.


Artigo Publicado originalmente no site http://direito.folha.uol.com.br/blog/estupro-constitucional-mudancas-na-constituição-podem-ser-incon...

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